domingo, 21 de março de 2010

A Garota, o cachorro e o fundo branco.




Este texto pertence a um grande amigo e músico Guilherme Gazotti.
Eu assisti o filme "Ensaio sobre a cegueira" e me recordei desta singular escrita.
É de imensa profundidade.
Quem ainda não leu o livro ou não viu o filme, recomendamos.



A Garota, o cachorro e o fundo branco
(Por Guilherme Gazotti)
*Baseado no livro "Ensaio sobre a cegueira" de José Saramago


Refugiar-me foi a maneira mais fácil que encontrei para entender o que me acontecia.
A maré que sempre está por aqui não foi de faltar logo hoje, e me acompanha. Quem chega também para o funeral das ilusões é a alvorada cinzenta carregando com ela gaivotas, parecem que por obrigação elas sobrevoam as águas todos os dias.
Sentado na areia apoio as mãos em meus joelhos, e começo a exercitar meus pensamentos, que aconteciam de acordo com o som das ondas tão calmas.
Minha vida se tornara naquele momento uma poesia livre, que desafiava todas as métricas e rimas.
Algumas garrafas de champagne, velas e cinzas se confundiam na areia. Afinal eram as marcas deixadas pelos que festejaram a chegada de mais um ano, como se um novo ano significasse vida nova.
A praia silenciosa era tomada pelo vazio, da alma. E tinha aquele barco a balançar no fim do horizonte, abandonado deixava a manhã com os mais enfáticos sinais de ressaca.
A paisagem não era das mais belas, talvez nem perto de agradável chegasse, mas qualquer tipo de luz hoje me bastava.
Começo devagar, mas as manchas invadem meu horizonte, pisco uma, até três vezes e some.
Algo que me acompanha desde meu primeiro segundo de vida, é mais fácil de aceitar, do que algo que pega de surpresa. Acostumar e entender, e os fiz.
E nesses momentos de arte pura, vale lembrar daquele amor platônico e as marcas de sangue que ele deixa, a lágrima é o clímax quando se trata de uma tragédia.
O sol saía de trás de uma nuvem, e feliz por vê-lo, mudou minha obra. Amarelo ouro e pinceladas no quadrado alvo. Finalmente ganhara cor, o dia também.
Meu coração vil começou a conflitar novamente com o destino, seriam as últimas horas desse homem, que morrerá com vinte e cinco anos, e nascerá com vinte e cinco outro.
O problema era viver de pintar quadros, fiz a fortuna necessária para viver bem, se podemos dizer que viver só é viver bem.
Um descuido faz minha cabeça virar para a esquerda e percebo alguém que caminhava junto ao mar, vinha longe, mas vinha. Antes parecia que o mundo todo descansava da bebedeira da festa, agora vejo que duas pessoas não. Uma mulher, triste e angustiada passa sem nem perceber a minha presença. Parecia que a cada momento o cenário ia clareando e melhorando para a pintura, talvez fosse melhor esperar e fazer uma obra-prima. Mas o tempo ao mesmo tempo em que deslumbrava a inspiração, antagônico era com meu tempo pessoal. Um relógio dentro do cérebro em contagem regressiva para desativar a sensibilidade da visão. Meu avô cegou quando era pai, meu pai morreu antes de cegar.
Já se passaram horas. As crianças, que não bebem acordaram seus pais bem cedo para brincar na areia. Meu quadro era só o tom do amarelo que o sol me inspirou.
A manhã era só das crianças que corriam, e gritavam. O som agradável das vozes inocentes quebrava o silêncio sereno. As perninhas correndo, as pás e os castelos de areia, o colorido das roupas, tornavam o ambiente vertiginoso. Era hora de me levantar e desistir da minha busca por inspiração totalmente vã, e fazia isso quando uma menina de uns nove anos se aproximou com seu cachorro. Oi, ela disse, meu pai falou que você estava pintando um quadro, como ele é? Veja, respondi mostrando e virando-o para ela. Não consigo, eu sou cega, mas meu pai disse que minha imaginação não tem igual, então se você me disser o que pintou, eu conseguirei imaginar direitinho. Era triste ter que dizer um fundo branco e algumas manchas em amarelo, pois não disse. O que você imagina, perguntei desafiando-a. Ah, um cachorro grande como o meu correndo na beira do mar, eu não sei como é o mar, mas imagino bastante água, meu pai disse que no horizonte o mar se confunde com o céu. É verdade! O quê, que o mar se confunde mesmo com céu? Não, quer dizer também, mas eu estou pintando um cachorro, bem parecido com o seu, uma garota muito feliz o abraçando, e ao fundo o horizonte que confunde o céu e o mar. Se você me disser que é tão feliz como essa garota do quadro, dou-lhe de presente. Sim! Meu pai sempre me falou que não poder enxergar é bom para a imaginação, e a criatividade pode te levar a lugares incríveis.
A garota me fez derramar lágrimas, que paravam em meu sorriso conflitante. O destino não é tão cruel assim, não aceitarei o fato de morrer um homem com vinte e cinco anos e nascer um outro homem, serei o mesmo, enxergando pra dentro agora.
Enquanto conversava com a garotinha, pintava o quadro, ela não se movia e ficava passando a mão na pelagem do canino, era seu único movimento, e isso me ajudava muito. Seu pai se aproximava lentamente, uma piscadela para mim, me fazia não alarmar sobre a sua proximidade. Ele estático admirava sua filha, como adulta ela é.
Ela falou sobre a escola e suas notas. Contou-me que o pai era piloto de avião, e como imaginava ser um avião.
E seu pai continuava ali parado, olhando orgulhoso para ela.
Alguns traços a mais na tela, e o cachorro estava pronto, idêntico ao Labrador que a guiava.
A garota feliz que pintava, sorria como ela sorria enquanto me falava da primeira vez que veio a praia, o quanto estranho achou a areia, e o quanto salgado achou o mar. O nariz arrebitado e pequeno combinava com a boca e as bochechas avermelhadas, o cabelo louro e fino reluzia a luz do sol, os olhos, bem, os olhos eram de cegos, mas brilhavam como de poucos que viam.
A garota no quadro estava pronta, o fundo era o mar, e me faltava ainda utilizar aquele primeiro tom de amarelo para definir o sol, mas por um momento não consegui retomar a pintura, pois as manchas voltaram.
Bom, eu preciso ir embora, meu pai deve estar preocupado, disse a garotinha. Eu esfregava meus olhos e não a ouvia direito, mas bem ouvi quando ela me pediu o quadro que havia prometido. Ele ainda estava incompleto, não havia o mar se confundindo com o céu no horizonte, o sol só tinha cor de sol.
Peguei o quadro e entreguei a ela, lembrei que a pintura em sua mente era rica nos detalhes, e que não fazia diferença o quadro ter a menina e o cachorro sem nada ao fundo. Deixei por conta daquela imaginação infantil de uma cega, enquanto eu só a imaginava dando seus curtos passos na areia de mão dada com o piloto de avião. Imaginava...




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